Sunday, May 27, 2007


28. Crónica

O meu ex não me dava orgasmos, por isso acabei com ele.

Tínhamos uma relação simpática e afável, mas no campo sexual a minha
insatisfação era crescente, tornou-se insuportável, e terminou por se
sobrepor a tudo o resto.
Não é que eu nunca os tivesse - às vezes, tinha. E claro que tinha
prazer. Mas não era o suficiente.
Ele argumentava que se esforçava, que se dedicava a ouvir-me dizer
quais as partes que mais me excitavam, qual a intensidade da pressão
do toque, do movimento, do ritmo. Mas afigurava-se-lhe difícil
controlar tudo isso enquanto sacava prazer. Eram demasiadas coisas na
cabeça, dizia ele, e ele só conseguia ter uma das cabeças a funcionar
de cada vez. Inicialmente, ainda argumentei que, interiorizando a
prática, deixaria de ter de pensar nela. Mas ele estava a demorar
demasiado tempo para chegar a esse ponto, com poucos resultados
práticos, às vezes dizia-se aborrecido e eu deixei de ver motivos para
continuar a investir numa situação da qual não obtinha o suficiente
para me deixar feliz.
Na nossa ruptura, ele apelidou-me de frígida, de insensível, de não
ter sentimentos. Ele via-se a si próprio como um amante dedicado e
generoso, apesar dos resultados o provarem o contrário. Para mim, foi
pouco mais que um pobre pilas ignorante e desajeitado.

Não tardou muito até voltar a encontrar um parceiro fogoso e excitante
como os que outrora tive. Conheci-o em trabalho, ele era um pescador
das vizinhanças cujo navio havia encalhado, e após a reportagem dei
por mim num tasco a lamber ostras em sua companhia. Esfregou-me lima
nas mãos, e pouco tempo depois já esfregava outras coisas noutros
sítios. Tinha umas mãos sábias e experientes, suficientemente
imaginativas para serem capazes de se recriarem como minhas, de agirem e de me tocarem como se efectivamente fizessem parte do meu corpo. Mas não faziam, e havia o toque da descoberta, de me tocar em toda a
parte, over and over again.

Há poucas coisas mais importantes do que a imaginação na cama. Os
limites somos sempre nós que os desenhamos, às vezes andamos sem
paciência para nos dedicarmos a pensar naquilo que temos, que
gostaríamos de ter, de experimentar, e vamo-nos acomodando ao
território reconhecido. Mas com ele nunca era assim: excitava-me tanto
que eu só conseguia ficar ainda com mais vontade de ter sexo com ele,
de partilhar prazer, de ser penetrada, afagada, masturbada, virada do
avesso. De ter prazer e de dar prazer, com a certeza feliz de que
seria retribuida.
Nas madrugadas em que não o via, imaginava que os seus largos dedos me subiam pelas pernas, humedecendo as coxas à sua passagem e abrindo
caminho para a língua que galopava energeticamente. Parece que até nem tinha estado com muitas mulheres, mas tinha os ouvidos suficientemente abertos e atentos para saber ser conduzido pelos seus gemidos de
prazer, pelas palavras que indicam o caminho que nem tabuletas, pelos
mapas desenhados pelas minhas próprias mãos. Outras vezes,
aventurava-se no caminho seguindo apenas o seu instinto, e mesmo
quando a experiência acabava por não ser totalmente do meu agrado,
revelou-se sempre como enriquecedora, estimulante e deliciosa.


27. Crónica

Por vezes gosto de fantasiar que trabalho como stripper num clube.
Visto uma roupa ridículamente provocatória e diminuta, que se divide
por diversas camadas de desejo e transparências adivinhatórias.
Circulo no alto dos tacões que me fazem bambolear o rabo como se fosse
um peixe, e, lentamente, desfaço a curiosidade encenada pela lingerie
apertada e luxuriante.
Caminho pelo palco, tiro roupa, rendas e transparências, por vezes
aproximo-me de alguém da audiência e faço com que me toquem, ou me
dispam, ou o que eu quiser. Que me sintam as carnes quentes, lhes
desperte o impulso sexual primário, ou desejo erótico, os olhares
melosos de pupilas dilatadas que me seguem para onde eu quiser, como
eu quiser. Tocam-me como nunca tocaram ninguém, ou como tocam toda a gente, ou como se tocam a si próprios. Há um deslumbramento infantil
nos olhares, na inocência com que parece que se vê uma mulher nua pela
primeira vez, que não é inocência nenhuma mesmo quando se tratou da
primeira vez.

Os corpos extasiados que me observam não têm nome, raramente têm
rosto, e muito menos personalidade - são tão-só um jogo de olhos e
pulsações animais, para eles incontroláveis e sobre os quais tenho
rédea curta. O poder e o jogo calculista da sedução são exclusivos
meus. Possuo aquela massa uniforme a meu bel-prazer, os seus desejos
incontroláveis e a fragilidade cândida que apresentam por serem
absolutamente incapazes de resistir.

Tocam-me e é um prolongamento da minha masturbação, aquelas mãos são regidas pela minha vontade, excitam-se porque eu deixo, logo, eu
excito-me também porque me deixo, porque tenho vontade, e nessa
obediência apenas a mim própria começo a sentir-me quente. Somos
diversos corpos limitados a duas vontades, a minha, e a deles, que é
uniformemente igual na sua obediência e impulso. Um cérebro para
vários corpos, como os tentáculos de um polvo que se extendem por toda
a sala escura, suada e quente. Eu sou um polvo, que se abana no palco
em seda carmim. A minha actuação é sempre previsível, dispo-me e eles
excitam-se, mas lá por isso não perde adeptos, nem deixo eu de me
excitar com eles. Sempre o mesmo jogo de sempre, da pele arrepiada,
dos tecidos macios que deslizam, o estado de semiconsciência que se
segue, e que nós o seguimos, perseguindo uma vontade profunda de
conquista e de obtenção de prazer.

Acabo ou a partilhar sexo com alguém no palco, ou entre as mesas numa
seminudez provocante que se enrola nas pernas e pesa nos volumes dos
colos ardentes de quem se senta nas cadeiras. Rebolo nas mesas e
excito-me com o exercício do poder da atracção e da sedução, ofereço a
perna num movimento de ordem para me tirarem as meias de liga,
esfrego-me naqueles seres sonâmbulos que se prestam a obedecer. Não
sou apenas um corpo, objecto de desejo: sou antes um conjunto de
escolhas que eu mesma fiz, de movimentos e olhares lânguidos que se
prolongam num jogo do mostra e esconde e que obedece apenas à minha
vontade.

Apesar dos padrões, das repetições, e até do ritmo ponderado com que
se pode encarar esta leitura, há uma libertação no fim do túnel, um
orgasmo que se erguerá e nos libertará momentaneamente dessa prisão
que é o desejo. Um descontrolo final, aliviado, que nos sai do corpo
num suspiro.
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