Monday, December 31, 2007



33. Crónica

É a noite antes da passagem de ano. Toca o telefone, é o Jean que me convida para jantar com as suas colegas, com as quais partilha o espaço da casa e a sua gestão. Funcionam como uma família desde que se conheceram - uma rapaz e um casal lésbico. Tratam-se muito bem e suportam-se como irmãos. Eu só apareço de vez em quando e nunca permaneço por muito tempo. Com elas relaciono-me com distância, já com ele tenho mais proximidade. Admiro-os aos três, pelo que são e pelas suas opções. Sãos excepcionais, sem dúvida.

Apareci para jantar: lasanha e caldo de legumes. O jantar era modesto mas muito agradável. Éramos sete no total. Estavam lá cinco lésbicas, Jean e eu. Apenas duas das lésbicas assumiam-se também como bissexuais: Dimo e Jennie. Terminamos o jantar com chocolates e licores finos. Jennie era a mais bonita porque tinha uma expressão infantil, totalmente inocente, o que era contrariada pelos seus actos – cada palavra podia ser um convite. Jennie foi a correr para a casa de banho atender o telefone quando este tocou. Quando regressou à sala vinha exausta. “Desculpem, acabei de fazer amor com a minha namorada!”, disse corada. A figura de Jennie despertava a atenção de todos, olhavamos para ela quando sorria, quando se concentrava em dizer qualquer coisa séria, quando provocava alguém, quando agredia ou quando se tocava…Eu estava alegremente entretida com Jennie mais que com qualquer outra pessoa naquela sala quando inesperadamente sinto-me a ser seduzida por uma das lésbicas da casa que se sentara mesmo ao meu lado. Éramos amigas, fazia meses, por isso tentei brincar com a situação, até Jennie ter interrompido – “vê lá se me fazes perder a aposta!”. Com um pedido de esclarecimento, fiquei a par do jogo, Jennie apostara alguns euros em como eu ia para o quarto com quem fosse capaz de me seduzir. Tomei como um desafio à minha sexualidade. O que me pareceu óptimo. Propus então o seguinte para surpresa de todos – “Se me pagarem, faço tudo, não precisam de apostar!”.

Não pretendia ser difícil, explorar os outros ou até fazer-me explorada, mas atrevi-me a dar o meu corpo a quem quisesse por modestas quantias de dinheiro. Desde que não me tirassem a roupa, podiam-me tocar totalmente. Se me excitassem o suficiente pararia a contagem do dinheiro e voluntariamente me propunha para uma das camas. O jogo perdeu o interesse na terceira tentativa, o que me fez sentir frustrada e contrariada. Bebi um pouco de licor e propus um novo jogo, uma oportunidade para ganhar mais e perder tudo. “Faço uma Lap dance por cinco euros a quem quiser”. Nunca tinha feito uma, não sabia sequer os movimentos e iria dançar desequilibrada devido aos tacões das botas. Ofereceram a primeira à minha primeira sedutora, pagaram por ela. Dei o meu melhor e fiquei a pingar de suor. Voltei a dançar para outra amiga. Desta vez correu melhor. Eu estava quente e exausta mas nem um pouco motivada a grandes partilhas. Sentei-me um pouco e olhei para Jean. Éramos amigos e talvez soubesse um pouco dele, mas não sabia o suficiente para adivinhar a sua reacção. Tinha-me convidado para um jantar e o jantar, por minha culpa tinha-se transformado nisto. Estaria ele chateado, aborrecido? Dei-lhe cinco minutos de atenção, olhei-o para analisar o que pensava e descobri que pensava no mesmo que eu – Jennie. Peguei em parte do dinheiro que ganhara e coloquei-o no centro da mesa dos licores, acenei a Jennie e disse-lhe que dançasse para mim.

Não era minimamente justo adivinhar os pensamentos dos outros e trai-los, mas foi exactamente isso que eu fiz. Entre conversas cruzadas, a proposta na mesa era que eu, desta vez, me despisse. Despir-me-ia parcialmente se Jennie o fizesse também. Jennie não tem escolha, porque não deseja ter escolha, deseja-me igualmente tal como eu a ela. Jennie tem calças de malha de andar por casa e uma t-shirt larga. Logo após começar a música ela descobre os seios. Senta-se no meu colo, de costas para mim e coloca as mãos nos meus joelhos. Está suspensa no ar e levanta e baixa o rabo, que se situa centralmente na minha zona pélvica, com movimentos lentos e ritmados. Ao mesmo tempo roda a cabeça e com os ombros arqueados para a frente comprime os seios para os tornar mais belos. Depois levanta-se e vira-se de frente para mim, coloca os joelhos na base do sofá onde estou sentada e coloca toda a zona pélvica perto da minha boca, depois desce e esfrega os seios, à vez, na minha cara. A lentidão com que dançava, a leveza do seu corpo e o ritmo que impunha a qualquer pequeno gesto, fizeram dela a melhor dançarina até então.

Jean, em resposta a isto, em resposta à minha traição, tira da carteira dinheiro e oferece-mo. A oferta era uma dança para Jennie. A última dança e eu já não queria mais. Eu cheirava a suor e estava vencida pela facilidade de Jennie. Afinal sentia-me praticamente derrotada por não ter sentido qualquer excitação.

Jean e Jennie mereciam a última dança. Avancei para Jennie e já só pensava como até podia ser bom se fizéssemos amor. Comecei a acreditar nisso com tanta certeza que mal me dei conta que Jennie me tocava toda. Empurrava as costuras das calças de ganga na minha vagina, subira para acariciar com violência o clítoris e quando podia puxava o gancho das calças no rabo e com o dedo pressionava o ânus. As mãos de Jennie avançavam desde as minhas botas até ao meu pescoço, cobrindo-me totalmente de carícias. Não valia criar regras para aquele momento, não valia dizer que não se pode tocar...deixei de dançar e beijei prolongadamente. Há muito que já ninguém estava na sala. Jennie ganhou a aposta.

32. Crónica

Estou aqui à espera que o meu marido morra. Aguardo nesta sala desoladora que alguém me anuncie o presente da sua morte cerebral que colocará um ponto final ao meu sofrimento.
Casámos-nos demasiado jovens para saber o que é o amor, aquele resquício seco que se prolonga para além de um enamoramento vertiginoso e atroz. Pareceu-nos que estarmos despidos, abraçados e embevecidos era efectivamente "fazer amor", e após o termos feito muitas vezes, achámos que era altura de casar e de prometer fazê-lo para sempre. Juntámos os trapos, fizémos um filho, vivemos juntos anos pardacentos (nem sei se foram um ou dez mil); estivémos fisicamente juntos em alguns dos momentos mais problemáticos da vida, morte de amigos, doença, falta de dinheiro. Vivíamos juntos debaixo do mesmo tecto, mas menos juntos do que parece: o meu futuro falecido tinha um flirt com a garrafa. Inicialmente não liguei muito, homens, pinga, todos sabemos que combina. Ele, tocado, premiava o meu desalento com o desabafo enfim dos seus problemas pessoais, mais a dificuldade em lidar com eles: a falta de trabalho fixo, o desencanto com a terra, a tristeza de se sentir preso a uma vida que sentia não ter escolhido na plenitude das suas capacidades. Eu refugiei-me nas promessas do passado e nos projectos que tínhamos para o futuro (ele esquecera-se de tudo). E, mais que tudo, refugiei-me no que tinha entre as pernas. Aguentei a pressão com massagens dos dedos, conseguindo suportar a desilusão dos seus múltiplos egoísmos com frequentes idas à casa de banho e desculpas diversas para ficar mais tempo na cama. Comecei também a ter sonhos involuntários, seres esbeltos e simpáticos que me perseguiam e me ofereciam prazer quando eu mais precisava dele, que é como quem diz nos momentos em que meu marido me virava literalmente as costas na cama, num amuo constante e ineficaz contra as coisas do mundo. As memórias dessas carícias sonhadas assolapavam-me com frequência diariamente, gestos suaves que me subiam pelas coxas, me aqueciam os lábios e traziam arrepios pelas costas. Agarrei-me ao sentimento ambivalente de viver com um homem e sentir prazer com muitos outros, sonhados ou inexistentes não interessa, eram outros, outros que não ele!
Foi assim aos berros que ele me acordou a meio de uma noite alcoolizado. Que me ouvira murmurar e suspirar excitada, que eu era uma porca devassa que só pensava no meu próprio prazer. Recordo essa noite como a primeira em que me bateu, enfiou-me um par de estalos e prometeu que da próxima seria pior. Sentia-me culpada, ao fim ao cabo era a ele que tinha prometido tudo, mas não conseguia impedir que aqueles anjos demoníacos entrassem nos meus sonhos húmidos. Tentei resistir, mas mantive a minha actividade recôndita na casa de banho. Apesar de me sentir uma pecadora infiel, aliviava-me o stress, um pequeno oásis de bem-estar que, para além do mais, descobri que reduzia a probabilidade das incursões nocturnas dos demónios sexuais. Sentia que a vida e o meu corpo iam murchando como velhas flores, e que aqueles exercícios corporais eram a única coisa que me dava alento e me prendia à vida tal como ela se soletra e eu a imaginara na minha juventude, repleta de faunos e sereias vivaças, alegres, numa plenitude de regojizo transcendental.
O meu marido via-me a sobreviver e a aguentar-me a alguma tábua de salvação que ele desconhecia; pensava que a força residia em algum amante real, que não fosse eu própria, e não descansou enquanto não inquiriu toda a vizinhança, o padeiro e a senhora do quiosque, para tentar saber com quem eu me enrolava. Teceu a ideia de uma intriga geral, que toda a gente conspirava nas suas costas, e que seria então com toda a vizinhança, mais o padeiro e quiçá sob o olhar benevolente da senhora do quiosque, que eu me enrolava. Numa tarde na tasca, envolveu-se numa briga com o cozinheiro, que lhe deu um tiro. Seguiu-se a balbúrdia que imaginam, e aqui estou eu, nas emergências, à espera da confirmação da morte que me permite continuar com a vida.
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