Monday, April 14, 2008






















Ninguém gostava de nós. Vivíamos numa parte menos arejada da cidade, sem parques nem jardins nem roupas de marca reluzentes. As crianças, era normal que andassem à porrada, e que aprendessem a defender-se sozinhas antes de perderem um olho, de partirem um braço, ou ficarem sem dentes.
A Maria era mais uma das putas de rua com quem cresci a desdenhar do amor. Que só arranjava problemas, filhos incertos e desprevenidos, doenças possessas e ataduras diversas as quais nenhum ser humano precisa. O amor dava dores de cabeça e amarguras, tudo sem qualquer sentido, tudo sem qualquer razão.
Com a Maria, iniciei-me na partilha de cortes escondidos das finas lâminas que penetrava na pele dos braços e das pernas, quando me sentava de cócoras encostada ao radiador no desalento das noites frias. Em abandono, entregava-me ao frio cortante da lâmina, primeiro entre os dedos, depois fixando-me nos pequenos brotes de sangue que surgiam aliviados por entre os finos poros da minha pele. Estranho prazer, não o da dor, mas do alívio por me ver viva naquele sangue que surgia, do controlo que eu impunha; da profundidade na forma, de metodologia rigorosa, eficaz.
Recordo ser muita nova e desejar o mesmo automatismo e descanso aliviado na procura do prazer carnal. Uma repetição constante que me levasse à tona da água, com garantia de sucesso. Nos momentos de desalento era apenas isso que eu queria, que a acção continuada no ritmo firme do meu braço me garantisse um alívio resplandescente e cristalino como o dos cortes. Da mesma forma, acarretava uma sensação de culpa – qual a mulher em criança que nunca se sentiu culpada por se masturbar?
As linhas que os separam não são assim tão diferentes. Há sempre uma metodologia preferida; uma técnica. Ambos vão num crescendo rítmico até eclodirem no alívio final. Há um sensação de conforto, de plenitude. Temporariamente, está tudo bem e nem se pensa em mais nada. O cérebro como que pára, de pensar, de sentir. Tudo é ultrapassado por uma mini-caravana de contentamento.
Para além do mais, as cicatrizes são bonitas. Uma longa lista de elementos visuais que nos recordam esses momentos de prazer e auto-controlo, uma pequena parte da nossa história pessoal, espalhada pelos braços e pernas. A visão carinhosa dessas marcas quase apaga o sentimento de culpa nelas inscrito. Por momentos, é possível vê-las como um pequeno conjunto de monumentos, troféus, da nossa capacidade de controlar uma situação, ultrapassá-la, e do dignificante prazer vencedor que isso suscita.
Como seria bom ter assim uma pequena listagem visual, que nos acompanhasse sempre, de todos os bons e melhores orgasmos que tivémos; e como também nos arrepiaríamos, ao passar com o dedo sobre essas marcas, electrizados com as memórias desses sublimes momentos.
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