Monday, December 31, 2007


32. Crónica

Estou aqui à espera que o meu marido morra. Aguardo nesta sala desoladora que alguém me anuncie o presente da sua morte cerebral que colocará um ponto final ao meu sofrimento.
Casámos-nos demasiado jovens para saber o que é o amor, aquele resquício seco que se prolonga para além de um enamoramento vertiginoso e atroz. Pareceu-nos que estarmos despidos, abraçados e embevecidos era efectivamente "fazer amor", e após o termos feito muitas vezes, achámos que era altura de casar e de prometer fazê-lo para sempre. Juntámos os trapos, fizémos um filho, vivemos juntos anos pardacentos (nem sei se foram um ou dez mil); estivémos fisicamente juntos em alguns dos momentos mais problemáticos da vida, morte de amigos, doença, falta de dinheiro. Vivíamos juntos debaixo do mesmo tecto, mas menos juntos do que parece: o meu futuro falecido tinha um flirt com a garrafa. Inicialmente não liguei muito, homens, pinga, todos sabemos que combina. Ele, tocado, premiava o meu desalento com o desabafo enfim dos seus problemas pessoais, mais a dificuldade em lidar com eles: a falta de trabalho fixo, o desencanto com a terra, a tristeza de se sentir preso a uma vida que sentia não ter escolhido na plenitude das suas capacidades. Eu refugiei-me nas promessas do passado e nos projectos que tínhamos para o futuro (ele esquecera-se de tudo). E, mais que tudo, refugiei-me no que tinha entre as pernas. Aguentei a pressão com massagens dos dedos, conseguindo suportar a desilusão dos seus múltiplos egoísmos com frequentes idas à casa de banho e desculpas diversas para ficar mais tempo na cama. Comecei também a ter sonhos involuntários, seres esbeltos e simpáticos que me perseguiam e me ofereciam prazer quando eu mais precisava dele, que é como quem diz nos momentos em que meu marido me virava literalmente as costas na cama, num amuo constante e ineficaz contra as coisas do mundo. As memórias dessas carícias sonhadas assolapavam-me com frequência diariamente, gestos suaves que me subiam pelas coxas, me aqueciam os lábios e traziam arrepios pelas costas. Agarrei-me ao sentimento ambivalente de viver com um homem e sentir prazer com muitos outros, sonhados ou inexistentes não interessa, eram outros, outros que não ele!
Foi assim aos berros que ele me acordou a meio de uma noite alcoolizado. Que me ouvira murmurar e suspirar excitada, que eu era uma porca devassa que só pensava no meu próprio prazer. Recordo essa noite como a primeira em que me bateu, enfiou-me um par de estalos e prometeu que da próxima seria pior. Sentia-me culpada, ao fim ao cabo era a ele que tinha prometido tudo, mas não conseguia impedir que aqueles anjos demoníacos entrassem nos meus sonhos húmidos. Tentei resistir, mas mantive a minha actividade recôndita na casa de banho. Apesar de me sentir uma pecadora infiel, aliviava-me o stress, um pequeno oásis de bem-estar que, para além do mais, descobri que reduzia a probabilidade das incursões nocturnas dos demónios sexuais. Sentia que a vida e o meu corpo iam murchando como velhas flores, e que aqueles exercícios corporais eram a única coisa que me dava alento e me prendia à vida tal como ela se soletra e eu a imaginara na minha juventude, repleta de faunos e sereias vivaças, alegres, numa plenitude de regojizo transcendental.
O meu marido via-me a sobreviver e a aguentar-me a alguma tábua de salvação que ele desconhecia; pensava que a força residia em algum amante real, que não fosse eu própria, e não descansou enquanto não inquiriu toda a vizinhança, o padeiro e a senhora do quiosque, para tentar saber com quem eu me enrolava. Teceu a ideia de uma intriga geral, que toda a gente conspirava nas suas costas, e que seria então com toda a vizinhança, mais o padeiro e quiçá sob o olhar benevolente da senhora do quiosque, que eu me enrolava. Numa tarde na tasca, envolveu-se numa briga com o cozinheiro, que lhe deu um tiro. Seguiu-se a balbúrdia que imaginam, e aqui estou eu, nas emergências, à espera da confirmação da morte que me permite continuar com a vida.

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