Sunday, July 01, 2007


29. Crónica

Não havia nada que ela pudesse fazer que parecesse certo, e sem intenção de nada ela tomou um caminho que a outros lhes pareceu errado. Havia uma confusão de coisas que pareciam estar mal, ou não pareceriam nada se não se desse o caso de serem vistas à luz de uma auto-análise profunda que demasiadas vezes tomava um contorno cruel; sem, contudo, se poder algum dia confirmar a veracidade dos factos pensados, perante a ausência de medidas fixas e métodos científicos apropriados.

Fria e viva precisou procurar algo que lhe aquecesse a alma. Fria porque analista, e com receio que a ebulição de sentimentos lhe saltasse pelos poros, conduziu-os pelo meio das pernas. Parecia talvez mais apropriado, a emoção ser canalizada para aí, para esse sítio onde se pode livremente gemer, gritar, arranhar, dizer obscenidades, agir de forma estranha naquilo que parece uma libertação das normas comportamentais vigentes.

Sobranceira e com vontade de transgredir, encaminhou-se hipnotizada para a loja, onde entre a vergonha e o desencontro com mais seis amigas escolheram toda uma miríade de objectos de prazer. A Casa de Eros vendia possibilidades de sexo, e era isso que elas procuravam. Entre risinhos e vergonhas que já não cabem no corpo de uma mulher, saíram da loja e carregaram o carro em direcção ao campo.

Mais tarde contou-me como foi. Era uma mansão em ruínas, restaurada, ocupada e limpa. Fizeram um pic-nic com muita gente que se prolongou pela tarde, e depois pela noite, onde saltitaram pelos bosques como faunos sem pudor nem pecado. Brincaram às identidades, aos polícias e ladrões, com algemas e pistolas de água. Era simples e belo como uma brincadeira infantil, apesar de quando éramos pequenos compreendermos o princípio do prazer, mas ninguém nos ter falado do sexo propriamente dito. Havia tecidos velados, almofadas de seda que lhes acariciavam as peles em todas as direcções e lhes aliviavam o cansaço da semana de trabalho, das obrigações sociais, um escape enfim daquilo que se sentiam frequentemente obrigadas a ser. Numa reinvenção deliciada, libertaram-se para aquilo que queriam, mas normalmente não podiam. Saltitando por fora da norma, ou daquilo que lhes desenhavam como obrigatoriedade; trocaram também estórias e confidências, desejos e levezas próprias do exercício das liberdades quando bem usufruídas. Sem explicações ou juízos de valor, despiram-se daquilo que eram e vestiram a pele do que queriam ser, com rendas e vendas sobre a pele arrepiada, deixando-se estar sem vontade de ir a mais lado nenhum.
Ao despertar, fizeram um bolo de chocolate e comeram-no todo, num acto de cumplicidade íntima despojado de mistério. E passaram mais outro dia enroladas na erva, ninfas pálidas e desarranjadas a banharem-se na fonte, a nadarem desprevenidamente no lago, a tomarem banhos de sol entre dildos e lubrificantes, a colherem amoras e a esmagá-las nas peles outrora estranhas, agora demasiado familiares para se poderem imaginar à distância.

Quando ela me contou esta estória, também eu fiquei com vontade de comer amoras e esmagá-las, de ter sexo como se não houvesse amanhã, de trepar às árvores e delas não descer sem me afoguear de bochechas coradas e ar de renascimento. Assim, calcei as meias de liga, vesti a gabardina, e sem mais que botas de cabedal, um vibrador, óleo de massagem e lingerie comestível encaminhei-me para tua casa às 4 da manhã de uma sexta-feira santa, decidida a partilhar desejos e fantasias pela noite dentro.

2 Comments:

Anonymous Anonymous said...

it gets better every time... espero que esta chegue á publicação. votos de continuação.

6:40 AM  
Anonymous Anonymous said...

esta é bem boa!
beijos e continuem...

10:04 AM  

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