Wednesday, January 17, 2007


19. Crónica

Hoje foi uma noite diferente. Há dias em que nos cansamos do que
somos, noutros desejamos ser outro alguém. Aborrecimento,
tranquilidade e premeditação conduziram à nossa troca de papéis de
domingo, o dia mais chato do ano, que se repete infinitamente cada
semana, e assim se aproxima, dia após dia.
“Eu sou homem, tu és mulher”, assim nos vestimos a rigor para jantar.
Desligámos a televisão e cozinhaste para mim do alto dos teus tacões,
enquanto eu me absorvia na leitura do jornal do empresário de
sucesso. Acendemos velas enquanto te espreitava o decote, era bonito
e ficava-te bem, e até tiveste o detalhe honesto de um mamilo erecto,
vislumbrado enquanto te arrepiava o braço sem querer, com uns
salpicos de vinho tinto. Ficas bem de vestido, pensei então, enquanto
olhava a linha das tuas costas magras e saboreava o prazer da
imaginação daquilo que não via mas iria mais tarde ter.

Discorremos sobre futilidades com os olhos ardentes, prolongando o
vazio da nossa conversa e retendo a ansiedade do que viria a seguir.
Levantaste-te para levar os pratos e trazer o resto, enquanto eu te
seguia com o olhar os passos equilibrantes e o sorriso lascivo no
regresso da sobremesa. Olhei gulosa para as taças transbordantes,
para a garrafa que me pediste para abrir, e meti-te a mão por debaixo
da mesa, para te sentir quente na luxúria do papel de quem recebe.
Não interrompeste nada do que dizias, seguiste nos gestos
efemininados recém adquiridos; o teu auto-controlo frio deixava-me
cada vez com mais vontade de te provocar, de te acariciar a pele com
as pontas dos dedos que se me iam ficando húmidas, reflexo quer da
muita roupa que tinha vestida e da gravata que me apertava o pescoço,
quer da excitação de pupilas dilatadas que me conquistava as formas e
me acelerava o orgão do amor.
Passei a língua pelo copo enquanto pensava em ti como meu acessório
de prazer. Desapertei a gravata e enterrei-me mais na cadeira, de mão
na tua coxa. Tacteei à procura dos teus dedos, e puxei-os para junto
de mim, para me tocar. Os teus gestos continuavam desinteressados,
algo acanhados, quase como se não estivesses totalmente aqui.
Inclinei-me para o teu rosto enquanto fechavas as pálpebras e abrias
os lábios num suspiro de ausência que enchi com pequenas dentadas;
percorri com a língua todo o contorno da tua boca, subindo depois
pelo nariz, sentindo já as tuas mãos na minha camisa larga e a tua
barba mal feita a roçar o tecido.
Não quiseste levantar-te mais, ergui-me eu e encostada à mesa deixei
que me desabotoasses as calças e me humedecesses com saliva. Como
continuavas de olhos fechados, lento na penumbra da sala mas sem
recusar a minha abertura de movimentos, subi-te o vestido e sentei-me
em ti. Passei a mão pelo teu rosto sentindo cada milímetro de pele
como se fosse minha, e observei atentamente o teu rosto adormecido
enquanto te dirigia para o sítio certo. Naquele momento, tiveste uma
ínfima contracção muscular, um pequeno espasmo na face, sinal
minúsculo e exclusivo que me indicava que aquele corpo era realmente
teu, que eras mesmo tu da nuca ao chão. Ordenei o ritmo como se fosse
apenas meu, usei a tua mão como se de facto fosse minha, e quando me
vim saí, ofegante, cumprindo o papel que me cabia.

O seguimento da tua erecção era problema teu. Ficámos os dois semi-
despidos do nosso papel transvestido a olhar para o teu membro,
erecto e desconsolado. Era difícil ignorá-lo, parecia que ele, tão
óbvio na sua emotividade, nos observava de todos os ângulos, vibrando
por vezes como se estivesse a tentar comunicar. Acendi um cigarro e
arrastámos-nos para o sofá, no meio de uma núvem de fumo e quiçá
ternamente murmurei que te amava e sabendo que não, pensei que te
poderias contentar com isso; e assim adormeci.

7 Comments:

Anonymous Anonymous said...

querida wanda, reparei nesta nova crónica e gostava de lhe dizer que ainda não li outra igual! absolutamente magnifica!

3:04 AM  
Anonymous Anonymous said...

aren't we all becoming vicarious bisexuals?

7:36 AM  
Anonymous Anonymous said...

não!!!! trans e bi são um bocado diferentes.

8:25 AM  
Anonymous Anonymous said...

muito muito bom.

5:50 AM  
Anonymous Anonymous said...

Hoje estou cansado e ainda tenho um monte de coisas para fazer, senão masturbava-me. Curto gajas de gravata...

1:02 PM  
Anonymous Anonymous said...

Querido Diário,
Aplaudimos veementemente o uso honesto que se propõe fazer com a outra mão!! Revela sem dúvida uma certa tendência!! É bonito e sincero!! Yeah!!

4:51 PM  
Anonymous Anonymous said...

Hmn... Quem terá escrito isto? seja quem for merece um beijo. Com a outra boca

6:34 PM  

Post a Comment

<< Home

Free Web Site Counter
Web Site Counter