Friday, February 09, 2007


22. Crónica

Em noites escuras, abro a janela e fico a olhar para os cabos de alta
tensão. Mas poucas são as noites que passo sozinha, no meio dos
afazeres sociais e encontros precários de trabalho. As minhas
preferidas são as de terça-feira, no club de chá onde jogamos bridge
e bebericamos chá inglês.

É um clube exclusivo de mulheres, onde por vezes nos vestimos de
homens. O chá é na realidade whisky e as cigarrilhas não raramente
encerram segredos.
O tecido das poltronas gasta-se ao sabor dos nossos desejos, enquanto
as cortinas grossas encerram essa particularidade social de gostarmos
muito de sexo e do acordo comum de não o reprimirmos entre aquelas
múltiplas paredes.
Aprecio a sensualidade fugaz dos corpos, de os beijar e sexualizar
sem nunca tocar profundamente nas almas. Quando corre bem, fica
apenas uma marca nas suas memórias, um leve ardor na pele, e é só.
Gosto de coisas simples e aprecio a candura do acto, daquele momento
de proximidade entre desconhecidos no qual subitamente se descobre
todo o humano inquieto que há no outro, um desconhecido que
identificamos como nós, numa espécie de irmandade oculta sem
quaisquer laivos de incesto.
Saboreio a entrega às mais diversas práticas, em busca do que sou -
dos meus limites, ou do prazer sem limites. Não vejo o sexo como uma
coisa porca, crónica, instinto primário negligenciado ou reprimido.
Não, nada disso – o sexo é belo em todos os seus defeitos, mesmo se
for rápido, disforme, e, sobretudo, saíndo da banalidade.

Não acredito em elevações cósmicas, mas se tal existisse, seria por
ventura através do sexo que lá chegaríamos. Porque é como dormir o
momento em que saímos de quem somos, não para um planisfério de
sonhos mas de concretizações, entrando na pele de quem nos acompanha
subtilmente pelos poros e transformando-nos no seu sangue, batimento
cardíaco e aceleração metabólica. O sexo é uma viagem pelas outras
pessoas, onde descobrimos semelhanças e afinidades, a matéria comum
de que somos compostos. No caso deste club, uma composição vulvular
variada e bela.

Temos diversas idades que nem sempre se adivinham pelas pregas dos
ossos. Algumas somos casadas, outras divorciadas, outras lésbicas
assumidas, e até meras curiosas nos vêem espreitar. Abrimos a nossa
experiência a todas as que nos querem ver, continuando invisíveis
perante todos os que preferem ignorar, que talvez sejam muitos: não
nos interessa.
Partilhamos-nos diversamente, em salas comuns de grandiosos tapetes
de veludo; ou em habitáculos privados, resguardados dos doces olhares
alheios. Não existem obrigações, ciúmes ou posses: a única obrigação
é o respeito mútuo, as máscaras que nos semicerram o rosto e que
colocamos à entrada, e o roupão de seda escuro que envergamos no
vestíbulo em troca das nossas roupas diárias. Despidas da nossa
identidade social externa, podemos assim usufruir-nos em pleno gozo
da nossa total liberdade feminina.

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